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Os diários íntimos na Internet e a crise da interioridade psicológica Paula Sibilia Mestre em Comunicação, Imagem e Informação (IACS/UFF) e doutoranda em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ) De: http://www.comunica.unisinos.br/tics/textos/2003/GT12TB6.PDF RESUMO: Este artigo aborda uma prática de expressão e comunicação surgida recentemente na Internet: a dos diários pessoais publicados na Web por usuários do mundo inteiro, seja no formato dos blogs ou das webcams. Estes fenômenos parecem recriar um hábito cuja sentença de morte já tinha sido decretada, que teve seu auge nos séculos XVIII e XIX e estava fortemente vinculado à sensibilidade da época: a paciente e minuciosa “escrita de si” nos diários íntimos. A intenção é focalizar um aspecto especialmente significativo das novas “narrativas do eu”: sendo expostas aos milhões de olhos que têm acesso à Internet, as confissões e as imagens cotidianas dos autores revelam uma peculiar inscrição na fronteira entre o extremamente privado e o absolutamente público. Intui-se uma subversão das fronteiras que costumavam separar essas duas esferas no mundo moderno, junto a importantes mutações nos tipos de subjetividades que germinavam nos cenários assim delimitados, com fortes abalos nas noções de interioridade, intimidade e privacidade. Rio de Janeiro, Janeiro de 2003 Cara Sophie... eu poderia encher páginas e páginas com tudo o que enche meu coração, acerca de muitas coisas; mas estou convencida de que este mundo não é o lugar adequado para verter a alma sem reservas. Ms. Peabody (em carta à filha, Sophie Hawthorne) Eu tenho o meu jornal na Rede e o torno público porque, precisamente, não tenho nada a dizer. Steven Rubio (blogueiro) Cara Sophie... nada como a nossa história tem sido escrito... e nem será. Pois jamais nos sentiríamos inclinados a fazer do público o nosso confidente. Nathaniel Hawthorne (em carta à esposa Sophie) Não sei se o que faço é bom. Sei que umas cem pessoas, todos os dias, me perguntam o que aconteceu ontem, e elas estão realmente interessadas... Aléxis Massie (blogueiro) Introdução O germe deste artigo é uma inquietação, uma tentativa de compreender um fenômeno aparentemente paradoxal – ou melhor, a confluência problemática de duas tendências contemporâneas: por um lado, a crescente ênfase biográfica que permeia o mundo ocidental (com sua voracidade pelas confissões e por tudo que remeta a “vidas reais”) e, paralelamente, um certo declínio da interioridade psicológica que sempre caracterizou a subjetividade moderna. Para ancorar tal discussão, escolhemos como objeto de estudo um tipo de prática que parece sintomática desses processos pois exprime tal paradoxo e, portanto, cremos que pode ser fértil na sua indagação: o auge das webcams e dos diários pessoais publicados na Internet, uma modalidade de “escrita íntima” ou de narração auto-referente conhecida como weblogs ou, simplesmente, blogs.1 Antes de mergulhar nessa problemática de candente atualidade, porém, torna-se necessário percorrer brevemente a genealogia dos dois fatores aqui considerados – tanto as “narrativas do eu” como a crença numa “vida interior” –, localizando a sua germinação conjunta na alvorada dos tempos modernos. Depois de reconstruir a historicidade desse campo contextual, procuraremos vislumbrar a especificidade de suas reverberações atuais, focalizando as fortes transformações que estão afetando a subjetividade contemporânea e que não cessam de reconfigurar a paisagem do mundo. O nascimento da intimidade Em um livro destinado a examinar as diversas formas de narrativas vivenciais, a socióloga argentina Leonor Arfuch recorre a um estudo de Mijail Bajtin sobre as biografias e as autobiografias antigas, e cita um trecho referido ao elogio fúnebre de um cidadão da polis grega: Não havia ali, não podia haver, nada de íntimo, de privado, de pessoal e secreto, de introvertido. Nenhuma solidão. Esse homem está aberto por todas partes. Inteiramente para o exterior, não guarda nada só para si, nada há nele que não seja da ordem de um controle ou de uma declaração pública e nacional. Tudo ali era absolutamente público.2 O exemplo é pertinente pois evidencia claramente um fato: a separação entre os âmbitos público e privado da existência é uma invenção histórica e datada, uma convenção que em outras culturas inexiste ou é configurada de outras maneiras. É, inclusive, bastante recente: a esfera da privacidade só ganhou consistência na Europa dos séculos XVIII e 1 No último encontro da COMPOS, organizado pela ECO/UFRJ no Rio de Janeiro, o artigo “A arte da vida. Diários pessoais e webcams na Internet”, de André Lemos – que, por sua vez, fora relatado por Paulo Vaz – iniciou a discussão sobre este tipo de práticas comunicativas, assinalando a sua importância na atual reconfiguração dos espaços público e privado. O presente texto pretende retomar esse convite, esboçando novas linhas de reflexão sobre o assunto. (Obs: as citações dos blogueiros Steven Rubio e Aléxis Massie, apresentadas nas epígrafes, foram extraídas do texto de Lemos). 2 BAJTIN, Mijail. Théorie et esthétique du roman. Paris: Gallimard, 1978. p. 280 Apud: ARFUCH, Leonor. El espacio biográfico: Dilemas de la subjetividad contemporánea. Buenos Aires: FCE, 2002. p. 70. XIX, quando um certo espaço de “refúgio” para o indivíduo e a família começou a ser criado no mundo burguês, almejando um território a salvo das exigências e dos perigos do meio público que começava a adquirir um tom cada vez mais ameaçante. Em seu livro O declínio do homem público, Richard Sennett analisa esse processo de esvaziamento e estigmatização da vida pública, e o surgimento concomitante das “tiranias da intimidade”. Uma dupla tendência que, de acordo com o sociólogo norte-americano, obedeceu a interesses políticos e econômicos específicos do capitalismo industrial. Assim, pois, como mostra Witold Rybczynski ao reconstruir a história da casa, a idéia de intimidade não existia na Idade Média. A necessidade, a sensação e a valorização de um certo espaço “íntimo” foram surgindo e se constituindo ao longo dos últimos três séculos da história ocidental. Foi, precisamente, com a paulatina aparição de um “mundo interno” do indivíduo, do eu e da família, que as pessoas começaram a considerar o lar como um contexto adequado para acolher essa vida interior que começava a florescer. Desse modo, as casas foram se tornando lugares privados e, como explica o historiador, “junto com essa privatização do lar surgiu um sentido cada vez maior de intimidade, de identificar a casa exclusivamente com a vida familiar”. Em muitos desses lares começaram a se definir funções específicas e fixas para os diversos cômodos, aparecendo inclusive os cabinet, “um quarto mais íntimo para atividades privadas como a escrita”. 3 Outro historiador, o inglês Peter Gay, comenta a importância que começou a ganhar um “sonho de consumo” do século XIX: a possibilidade de se ter “um quarto próprio”, 4 no qual o mundo interior do morador podia se expressar – dentre outras formas através da escrita – e ficar à vontade. Pois, em contraposição aos rituais hostis da vida pública, o lar foi se transformando no território da autenticidade e da verdade, um refúgio onde era permitido ser “si mesmo”. A solidão, que tinha sido um estado raro na Idade Média, permitia o desdobramento de uma série de prazeres até então inéditos, a resguardo dos olhares intrusos e sob o império austero do decoro burguês. Foram se configurando, dessa maneira, no despontar da Modernidade, dois campos claramente delimitados: o espaço público e o espaço privado, cada um com suas funções, suas regras e seus rituais próprios. Os escritos íntimos de Ludwig Wittgenstein oferecem um exemplo particularmente interessante dessa delimitação rígida e precisa, pois seus Diários secretos (publicados de maneira póstuma, contrariando a vontade explícita do autor) replicam claramente tal cisão: nas páginas pares, o filósofo vertia suas vivências pessoais numa linguagem codificada, enquanto nas páginas pares anotava seus pensamentos públicos em perfeito e claríssimo alemão. Relato e criação do eu Os novos ambientes íntimos e privados que começaram a proliferar três séculos atrás eram um verdadeiro convite à introspecção: nesses espaços impregnados de solidão, o sujeito moderno podia mergulhar na sua obscura vida interior, embarcando em fascinantes viagens auto-exploratórias que, muitas vezes, eram vertidas no papel. Como constatam Alain Corbin e Michelle Perrot na passagem da História da vida privada relativa a esta 3 RYBCZYNSKI, Witold. Lo íntimo y lo privado; La domesticidad. In: La casa. Historia de una idea. Buenos Aires: Emece, 1991. p. 50. 4 GAY, Peter. Fortificación para el yo. In: La experiencia burguesa, de Victoria a Freud, v. 1: “La educación de los sentidos”. México: FCE, 1992. p. 374 a 426. época de intenso “deciframento de si”, o “furor de escrever” tomou conta de homens, mulheres e crianças, imbuídos tanto pelo espírito iluminista de conhecimento racional como pelo ímpeto romântico de mergulho nos mistérios mais insondáveis da alma.5 A escrita de si tornou-se uma prática habitual, dando à luz todo tipo de textos introspectivos nos quais a auto-reflexão se voltava não tanto para a busca de um certo “universal” do Homem, mas para a sondagem da natureza fragmentária e contingente da condição humana, plasmada na particularidade de cada experiência individual. Inaugurada com grande estilo nos Ensaios de Michel de Montaigne e confirmada, depois, nas paradigmáticas Confissões de Jean Jacques Rousseau, a nova modalidade foi fazendo da literatura um imenso laboratório “no qual as formas subjetivas modernas ganharam contorno e visibilidade”, como expressa a psicanalista Maria Rita Khel em um artigo intitulado “Nós, sujeitos literários”. As cartas, que também pertencem a esse conjunto difuso de gêneros conhecidos como narrativas do eu, também foram se desenvolvendo e vivenciaram uma sorte de apogeu no final do século XVIII, quando Goethe publicou seu romance Os sofrimentos do jovem Werther, que recorria ao formato epistolar para narrar uma história de amor romântico e trágico. O livro obteve um sucesso imediato e fulminante: a identificação dos leitores (e das leitoras) com os personagens foi tão forte, que não motivou apenas a imitação do estilo em milhares de missivas de enamorados anônimos; além disso, muitos emularam o malfadado protagonista até as últimas conseqü.ncias: uma onda de suicídios por amores não correspondidos sacudiu a Europa. Todos os corpos, sem exceção, eram encontrados junto à imprescindível e arrebatadora carta derradeira. Não por acaso, diz-se que Goethe ensinou seus contemporâneos a se apaixonar, seguindo a escola do movimento romântico, bem como a sofrer, a viver e a ser. No mesmo período, outro romance epistolar partilhava de sucesso semelhante: A Nova Heloisa, de Rousseau. Muitas obras marcantes exploraram as virtudes do gênero que, como os diários íntimos, possuía um vínculo evidente com a sensibilidade da época: de As relações perigosas, de Laclos, e O homem de areia, de Hoffmann, até os populares Drácula e Frankenstein, para citar apenas alguns exemplos ainda famosos. Assim como as trocas epistolares, a escrita do diário íntimo foi uma atividade burguesa por excelência, que floresceu no século XIX. Por isso, os romances psicológicos – também fundamentais na construção do imaginário da época – não vampirizaram apenas a forma epistolar mas também a da confissão íntima e cotidiana, a fim de construir uma rica série de estratégias literárias de autenticidade e verossimilhança. Assim, uma infinidade de personagens foi desbordando das páginas dos romances para influenciar fortemente as subjetividades da época: de Emma Bovary ao jovem Törless, a escrita literária virou um campo de identificações, uma fonte de roteiros de subjetivação para os indivíduos modernos. Foi germinando, desse modo, uma forma subjetiva particular, dotada de uma certa “interioridade psicológica”, na qual fermentavam atributos e sentimentos privados. O repertório afetivo dessa esfera íntima podia e devia ser valorizado, sondado, cultivado, protegido e enriquecido. Como afirma outro psicanalista brasileiro, Benilton Bezerra Jr., “o homo psychologicus aprendeu a organizar sua experiência em torno de um eixo situado no centro de sua vida interior”. 6 5 CORBIN, Alain; PERROT, Michelle. El secreto del individuo. In: ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges. Historia de la vida privada, v. 8: “Sociedad burguesa: aspectos concretos de la vida privada”. Madri: Taurus, 1991. p. 160. 6 BEZERRA Jr., Benilton. O ocaso da interioridade. In: PLASTINO, C. A. (org.). Transgressões. Rio de Nos diversos gêneros da escrita íntima, os sujeitos modernos aprenderam a modelar a própria subjetividade através desse mergulho introspectivo, dessa hermenêutica incessante de si mesmo: no papel, a partir da matéria caótica e da experiência fragmentária da vida, era preciso narrar uma história e criar um eu. Nessa atividade criativa, bem como em qualquer outra modalidade de construção de si, sabe-se, a linguagem é o berço do sujeito, que somente pode se constituir como tal a partir da interação com os outros e da sua inserção em um universo simbólico compartilhado através do equipamento lingü.stico. “Eu é um outro”, reza a famosa frase de Rimbaud, que cai como uma luva para definir os protagonistas dos relatos autobiográficos e, também, a qualidade sempre fictícia do eu. Embora seja difícil arriscar definições precisas, contudo, até hoje persiste a diferenciação entre as narrativas de ficção e aquelas que se apóiam na garantia de uma existência “real”, inscrevendo tais práticas em outro regime de verdade e suscitando um horizonte de expectativas diferenciado, apesar da sofisticação das artimanhas retóricas acumuladas, apesar dos séculos de treinamento dos leitores, e apesar dos abalos sofridos pela crença numa identidade fixa e estável.7 Em tempos de incertezas, curiosamente, a mítica singularidade do eu conserva a sua força – nutrida por uma cultura do individualismo cada vez mais depurada, embora atravessada pelos sedutores ditados identitários do mercado – e não cessa de convocar os mais sedentos olhares. Cabe lembrar que os relatos autobiográficos, especialmente as diversas formas do diário íntimo, tiveram a sua morte anunciada e confirmada efusivamente nas últimas décadas do século XX, sem que ninguém previsse seu repentino ressurgimento nos novíssimos ambientes virtuais e globais das redes eletrônicas.8 Resta saber, entretanto, se os sentidos dessas práticas continuam a serem idênticos aos de seus ancestrais pré-digitais; a fim de indagar tais questões, orientaremos o foco da análise para o contexto contemporâneo. |
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